sábado, 26 de março de 2011

“Há muito poucas coisas: silêncio e palavras”

Dor, lembrança, memória e superação se misturam na busca pela tranquilidade


A vida secreta das palavras (La Vida Secreta de las Palabras)
2005/Espanha/ 115min.
Direção e roteiro: Isabel Coixet
Elenco: Sarah Polley, Tim Robbins, Javier Cámara, Eddie Marsan, Leonor Watling.

Hanna (Sarah Polley) é uma mulher reservada, metódica, objetiva, solitária e misteriosa que tenta esquecer seu passado. Não fala muito e vive para si mesma por meio de uma rotina rigorosa que envolve ir ao trabalho pontualmente – sem jamais ter faltado um único dia – e comer sempre a mesma refeição composta por uma pequena poção de arroz branco, galinha e meia maçã.

Apesar de ser uma funcionária exemplar, sua presença incomoda os demais trabalhadores. Sendo assim, Hanna é incentivada, ou melhor, é convidada a tirar férias. Ao invés de relaxar em algum paraíso tropical, vai trabalhar como enfermeira em uma plataforma de petróleo na qual, após um acidente, Josef (Tim Robbins) se encontra em uma situação complicada com queimaduras pelo corpo, além de estar temporariamente cego.

Tratando dessa maneira, o filme poderia se tratar de um simples romance entre dois indivíduos que se cruzam por um acaso e descobrem o amor, mas não é exatamente isso... A vida secreta das palavras vai além do óbvio e apresenta ao espectador uma obra construída através de camadas finas e delicadas que devem ser apreciadas e analisadas com cuidado, além de representarem a possibilidade de diferentes interpretações para cada olhar que se permitir enxergar o longa.

Nas palavras da própria diretora: “Um filme sobre o peso do passado. Sobre o súbito silêncio que é produzido antes de uma tempestade... E, acima de qualquer outra coisa, sobre o poder do amor até nas mais terríveis circunstâncias.” (Tradução livre).

Não se sabe muito sobre Hanna. A narrativa é construída de maneira que o espectador tenha conhecimento apenas do mínimo necessário em relação á personagem. Não se sabe de onde ela vem (conhece-se apenas um sotaque do leste europeu) ou por que ela vive da maneira que vive. Não se sabe como ela ficou quase surda (Hanna utiliza um aparelho de surdez que, quando desligado, a deixa sem escutar praticamente nada. Ela costuma fazê-lo quando quer ficar sozinha) ou mesmo por que ela está sempre só. É como se a própria Hanna quisesse esquecer de si mesma, como se estivesse apenas esperando. Pelo quê? Também não se sabe. É como se escuta na narração em off em um determinado momento do filme: “matando o tempo antes que ele mate você”. Ela quer se desvincular do seu passado, mas para isso, também quer esquecer do seu presente, afinal, diz o ditado que a vida continua. Mas continua mesmo? Para quem? Como se segue adiante?

As respostas são mantidas distante dos espectadores que se envolvem com Hanna e suas questões mesmo sem saber realmente quem é essa mulher. As revelações para essas perguntas (ou pelo menos para uma parte delas) serão apresentadas mais à frente, depois de muita história.

Ao ser forçada a deixar a sua rotina “confortável”, Hanna é obrigada a encarar certas questões. Primeiro precisa decidir o que fazer com tanto tempo livre. Ela se espanta ao constatar que suas férias consistem em um mês inteiro.

Apesar das suas decisões, ela acaba sabendo da vaga na plataforma de petróleo. O que pode ser melhor para esquecer de si mesma e dos seus problemas do que manter a mente ocupada com o trabalho, não é? Mas essa oportunidade de emprego se mostrará muito mais do que isso. Embora ela tenha necessidade de estar só, fora do contato humano, Hanna precisará reavaliar muitas questões.

Após um acidente na plataforma em questão um funcionário morre e outro, o já citado Josef, permanece em um estado complicado de saúde. Esse acontecimento resulta no fechamento parcial da plataforma. Sendo assim, os trabalhadores do local, cerca de sete homens, ficam suspensos por incertezas. Não se sabe o destino da plataforma nem, consequentemente, o destino daqueles que nela habitam.

Ao conversar com a recém-chegada, Dimitri, o responsável pelo estabelecimento, ressalta que esse é um ambiente composto, em sua maioria, por pessoas que querem ser deixadas em paz por um motivo ou por outro. Mas a situação atual altera a perspectiva geral. Com o fechamento da plataforma, até mesmo o ruído alto das máquinas vai embora. Resta apenas o silêncio e a incerteza dessas vidas sobre o mar que recebe milhares de ondas diariamente sem nem mesmo sentir.
No espaço confinado em alto mar conhece-se o já citado Dimitri - uma dessas pessoas que querem ser deixadas em paz – Josef; Abdul que trabalha com a limpeza; Scott e Liam, responsáveis pela sala de máquinas; Martin, o oceanógrafo que trabalha com pesquisas sobre o impacto do mar na plataforma e também sobre o impacto do trabalho realizado pela plataforma no mar e, mais especificamente, na vida dos mexilhões do local e Simon (Javier Cámara de Fale com ela), o cozinheiro espanhol.

Pessoas tão diferentes que precisam conviver em um mesmo espaço físico relativamente grande, mas que estando aparte de tudo, torna-se tão pequeno. Cada um, à sua maneira, tenta fugir dos seus próprios demônios e fantasmas. Cada um precisa esquecer de algo ou ainda, lembrar-se de alguma outra coisa. Faz-se necessário estabelecer seus próprios rituais para que a sanidade seja mantida.

Seja através do amor e do contato físico clandestino como no caso de dois dos personagens, homens casados que, estando tão distantes de casa, necessitam ser relembrados de certas sensações e do carinho através da cumplicidade física e emocional um do outro.
Seja através da vontade de testar suas habilidades e manter-se são através dos aromas, dos sabores e da arte, caso de Simon, o cozinheiro. A cada dia ele prepara uma refeição específica de alguma parte do mundo. Sempre algo diferente que é preparado enquanto se escuta música típica do local de onde a comida em questão se origina.

É a partir dessa nova realidade e desses novos confrontos que Hanna precisa reencontrar-se em si mesma. Durante a sua estadia na plataforma de petróleo, ela passa a ter o contato humano que há tanto tempo vinha evitando. Principalmente através da relação que estabelece com o seu paciente. Ambos, cada um carregando suas próprias bagagens e ferimentos, passam a conviver e conversar diariamente. Essa troca, por vezes bem humorada, melancólica, triste, misteriosa e profunda molda os dois dentro de novas perspectivas.

A partir do momento em que Hanna se vê constantemente confrontada pelos questionamentos e conversas incansáveis de Josef ela passa a encarar seus próprios medos e a possibilidade de mudança.

Uma passagem importante que sinaliza a quebra de algo importante dentro da personagem chega através da gastronomia. Há quanto tempo Hanna se alimenta apenas de arroz, galinha e maçã? Não se sabe ao certo, mas é possível constatar que tal hábito já vem sendo cultivado há muito tempo e que a sua rotina nunca é quebrada. Pelo menos até então. Quando ela finalmente decide compartilhar alguma informação relevante com Josef – que gosta de arroz, galinha e maçã – ele não consegue acreditar que ela goste apenas disso. O lampejo de cumplicidade é ameaçado e, em seguida, ao encontra-se sozinha, Hanna entrega-se a novos sabores. Esse é o momento-chave da mudança. Seu nervosismo e ansiedade são visíveis. Seria esse um reflexo da necessidade de mudar?
A convivência entre Josef e Hanna vai mudar o destino dos dois. A elaboração da confiança e do companheirismo dos dois vai sendo construída com o passar do tempo no qual ambos têm a oportunidade de refletir e, principalmente, compartilhar as suas feridas. Os dois se ajudam a entender já que certas marcas não podem ser apenas superadas e esquecidas. Seus fardos são divididos a partir do momento que um enxerga no outro a possibilidade de se compreender.

A parceria entre a atriz Sarah Polley e a cineasta Isabel Coixet não é novidade. Em 2003 as duas trabalharam juntas no longa Minha vida sem mim que apresenta muitos pontos em comum com A vida secreta das palavras como uma história simples que desemboca em subtextos complexos, a estética naturalista, a delicadeza, a sutileza, a sensibilidade à flor da pele e a estética minimalista. Muito do estilo da diretora se apresenta nos dois filmes.

É importante ressaltar que a parceria entre as duas vem dando certo. Mais uma vez Sarah Polley entrega uma atuação belíssima que funciona perfeitamente ao lado de Tim Robbins. Todo o elenco está afinado e realiza um trabalho muito competente.

A vida secreta das palavras é muito consistente na sua narrativa. A trama é muito bem construída. No início do filme não se imagina o desfecho que nos espera e, no entanto, os elementos vão se apresentando aos poucos até que cada ponta seja devidamente amarrada.

Além disso, trata-se de um deleite visual. Mais uma vez – como aconteceu no já citado trabalho anterior da diretora, Minha vida sem mim – Isabel Coixet aposta no naturalismo, cenários e personagens que se aproximam do real. Eles são tão palpáveis que poderiam ser/estar ao nosso lado. Maquiagem, figurino, iluminação... tudo é apresentado de maneira bem natural.

Outro aspecto importante é a maneira característica com que a diretora utiliza a câmera nos seus filmes. Ela está constantemente na mão, o que confere um leve balançar as cenas. Além disso, observa-se também que essa câmera é bastante furtiva. Apresenta-se a uma certa distância, com algum objeto à frente para revelar, em segundo plano, o foco da cena.

A montagem é fluida e tranquila auxiliada, muitas vezes, por fades in e out (desaparecimento e reaparecimento gradual da imagem em uma tela preta). Esse recurso ajuda a estabelecer a “lentidão” do filme. Essa lentidão não é cansativa e nem mesmo massiva. Personagens e espectadores podem tomar o seu tempo para absorver e processar o que se passa diante deles. Tanto Hanna como Josef precisam viver um dia de cada vez para, assim, entender melhor o que está acontecendo com eles e, principalmente, para que possam se permitir ou não. Sua feridas invisíveis necessitam de tempo.

Assim como em Minha vida sem mim, O silêncio das palavras se trata de um filme introspectivo. Não há excessos. A ação se desenrola gradativamente e o filme se apresenta de maneira serena, delicada e lenta, como precisa ser digerido. As camadas se revelam aos poucos.

É como a narração do filme ressalta: “Disse-lhes antes, não foi? Há muito poucas coisas: silêncio e palavras.” É no silêncio que Hanna quer esquecer e, principalmente, ser esquecida. É nesse silêncio que ela precisa se confinar. Assim como Josef carrega o seu próprio silêncio. Mas é através das palavras que eles passam a se reencontrar. Sim, palavras nem sempre são doces. Palavras que revelam e relembram. Que ajudam a reviver infernos particulares, mas ainda assim palavras que levam à compressão.

Afinal é por meio dessa convivência e dessa cumplicidade que passamos a nos entender melhor. É durante alguns momentos de confiança genuína que fardos impensáveis podem ser, ao menos, um pouco aliviados ainda que isso não possa ser feito completamente.

Um filme absolutamente cinematográfico, esteticamente maravilhoso que ressalta a relevância das palavras e do diálogo. Como uma cronista, Isabel Coixet mergulha em temas cotidianos para construir uma narrativa lírica, precisa, delicada e profunda.

Agora? Zaz.

Um comentário:

Anônimo disse...

Parabéns, belíssimo comentário sobre o filme, extremamente sensível e atento. Assisti-o duas vezes e é com certeza, como descreveste, uma narrativa delicada e profunda.