segunda-feira, 21 de março de 2011

Enxergar além do óbvio e do ordinário


Sou feita de lágrimas. Uma típica chorona. Choro com filme, telejornal, histórias bonitas, pessoas felizes... Choro, bom, com quase tudo. Quase sempre. Mas – não sei bem o motivo – não choro com livros. Adoro ler. A palavra impressa me encanta, mas simplesmente não choro com eles. Mesmo.

No entanto a barreira foi quebrada. Não dizem que toda regra tem uma exceção? Pois bem, a minha tem nome, A vida que ninguém vê da jornalista Eliane Brum. Comecei a leitura em um ônibus e já com duas das três primeiras histórias (mais especificamente, Histórias de um olhar e enterro de pobre) estava lá eu toda emocionada com lágrimas brotando em um olhar encantado.

Durante 11 meses, a autora foi responsável por uma coluna no jornal Zero Hora que misturava crônica e jornalismo. Além de desafiar a objetividade do jornalismo que busca o extraordinário, A vida que ninguém vê (também nome da coluna) partia para o micro que representa o macro, vidas comuns. Zés e Marias que, assim como diz o título, ninguém vê. Pessoas ordinárias, mas que, assim como cada ser humano, na verdade, são extraordinárias, guardam histórias e marcas únicas.

O olhar da autora consegue não apenas enxergar, mas também relatar de maneira primorosa histórias que vão desde um funcionário do aeroporto que sonha em voar, mas não consegue até um macaco que, ao fugir da jaula parte para tomar uma cerveja, por exemplo.

É difícil não se envolver com a narrativa lírica e precisa da jornalista. É difícil não se entregar a essas vidas que ninguém vê e que, no entanto, nos lembram de enxergar além do óbvio. Nos lembra que é necessário deixamo-nos encantar novamente pela vida e também que cada vida é importante e única.

Uma leitura indispensável não apenas para os que trabalham com a notícia. Uma dose fundamental de beleza.

***

De lá, ressalto uma das crônicas/reportagens.


Na página 132 o leitor tem a oportunidade de conhecer Dona Maria, uma mulher de 55 anos que sempre sonhou com as letras e o conhecimento.

Apesar da vontade não teve oportunidade de estudar. Mesmo assim decidiu que seus filhos teriam um destino diferente do seu. Doa Maria então enfrentou muitas barreiras e dificuldades. Algumas delas vindas da própria casa como, por exemplo, através do marido que não concordava com a decisão da esposa em permitir que os filhos estudassem.

Mesmo assim Dona Maria se desdobrou e trabalhou em dobro para que seus filhos aprendessem a ler e a escrever. Com o tempo a situação de Doa Maria mudou e, aos 55 anos, ela própria conseguiu, enfim, partir em busca das letras e do tal conhecimento. Ainda assim enfrentou muitas complicações, mas não desistiu do seu sonho.

Reproduzo aqui um trecho da entrevista que Dona Maria concedeu a Eliane Brum (Págs. 134 a 136):

LENDO O MUNDO

EB: Diga aí, dona Maria, o que a senhora está escondendo por trás dessas pestanas?

DM: É o seguinte. Eu me sentia a última das pessoas. Sei costurar, fazer roupa de homem, de mulher e de criança. Sei bordar, fazer crochê e tricô. Mas o que adianta isso sem saber ler? É como estar com sede e tomar refrigerante. Eu preciso de água.

EB: E o que é não saber ler?

DM: Não saber ler é o mesmo que ser cego. É não saber o que tem do outro lado da parede.

EB: E isso (saber ler) mudou a sua vida?

DM: Sabe flutuar? Quando pego meu caderno e leio, parece que tô flutuando. O mundo fica mais bonito, o céu fica mais azul e o verde, mais verde.

EB: O que dá dentro da senhora quando a senhora lê?

DM: Cada palavra que eu consigo ler é um horizonte que tá se abrindo na minha cabeça. E eu vou correr atrás dele. Ah, eu vou mesmo.

EB: E até onde a senhora vai com isso?

DM: Não sei onde as letras vão me levar. Tô bem desconfiada que isso não para mais.

EB: E afinal, o que é ler?

DM: É assim. Eu achava que letra era letra. Era como uma toalha de mesa. Não tinha vida. Esses dias tava no colégio, olhei e descobri que as letras têm vida. Eu leio e elas conversam comigo, me dizem o que eu preciso. Contam coisas que eu nem imaginava. Tipo “M” de Maria, né? É só um “M”, mas quando junta tudo, a Maria fala comigo. A Maria fica viva.”

Eu não sei o que me impressiona mais. Se a garra, a força de vontade e a determinação da Dona Maria, além da sua clareza em relação ao seu sonho. Ou se sua sabedoria. Sua perspectiva e interpretação.

Imagens: O silêncio dos livros.

Agora? Billie Holiday.

3 comentários:

wolver disse...

Lindo. As letras impressas nos carregam suavemente para o mundo virtual, o imaginário.

Há um "typo" de concordância no primeiro parágrafo: A palavra impressa me encanta(m), (sic). Deve tirar o 'm'.

Atenciosamente,
claudio

Caleidoscópio disse...

Obrigada=)

=*

Ela disse...

adorei..