sábado, 21 de agosto de 2010

Descobertas de um sábado


Presa no fim de semana fazendo alguns trabalhos que, não se sabe bem o motivo, foram deixados para última hora. Mas sem problemas, tudo sob controle.

Pois bem, nas minhas visitas/descobertas online de hoje me deparei com uma entrevista dos realizadores do longa Viajo porque preciso, volto porque te amo (Karim Aïnouz e Marcelo Gomes) no blog de Jean-Claude Bernardet que eu não havia lido antes. Que felicidade! Não apenas por estar pensando em fazer um trabalho mais extenso com esse filme, mas também por ter amado o longa e porque a entrevista vale a pena.

Por isso, compartilho aqui a primeira parte da entrevista (link para a página com a entrevista completa)

"06/05/2010
Entrevista Marcelo Gomes e Karim Ainouz – Primeira parte

KA – O projeto começou com uma vontade grande da gente fazer alguma coisa juntos. A gente vinha de lugares geografica e afetivamente parecidos, [...] ele vinha do Recife eu do Ceará, [...] A primeira ideia foi fazer um filme sobre feiras. Que relação tinham as feiras do sertão com as de outros lugares do mundo? Pensamos em fazer uma viagem pra documentar essas feiras, isso em 1997. Quando eu conheci o Marcelo ele tava escrevendo o argumento do ASPIRINAS e eu tava pensando em fazer o MADAME SATÃ, deve ter sido em 1994. Até 1997 não conseguimos ir pra lugar nenhum, só escrevendo, reescrevendo, havia uma grande frustração, uma fome de fazer filmes. Então pedimos apoio ao Itaú Cultural pro programa Rumos, erramos o orçamento, pedimos mais do que podia, mas ganhamos. Era um dinheiro pra fazer uma pesquisa sobre as feiras enquanto espaço onde as temporalidades se cruzam, [...] Mas estávamos com tanta fome de filmar que pensamos, vamos fazer pra valer, pode ser que dê certo, não vamos só levantar material de pesquisa, vamos filmar. Tínhamos uns slides, uma Super-8, duas câmeras 16mm, uma Bolex e uma câmera tcheca, “Minockner”, e também uma mini-DV VX1000 da Sony, hoje em dia nem se fabrica mais. A equipe era eu, Marcelo, Heloísa Passos (fotógrafa), Sanderlan (assistente de câmera/som), o motorista (que fazia um pouco de tudo) e uma produtora, a Juliana. João, que era o produtor, alugou uma Sprinter azul-piscina que era uma pouco o tema. O título original do filme era CARRANCA DE ACRÍLICO AZUL-PISCINA, não era SERTÃO DE ACRÍLICO AZUL-PISCINA.

MG – Criamos a ideia das feiras porque é um lugar onde se tem uma industrialização um tanto esdrúxula, rapadura sendo vendida com santinhos holográficos importados do Paraguai, tá tudo ali junto nessa encruzilhada. Mas a coisa primordial é que queríamos viajar pelo sertão. O Karim nunca tinha ido pro sertão e eu tinha ido muito pouco. Era um lugar que conhecíamos de memórias, conversas de família, é um lugar mítico pra nós cineastas. É o nosso western. Existia o desejo de se perder no sertão. Havia o mote da feiras mas assumimos logo no segundo dia de filmagem que íamos filmar tudo o que nos emocionasse. No terceiro dia decidimos que não cumpriríamos o plano de filmar feiras. Filmamos feiras mas se existia alguma coisa que nos emocionasse a gente parava e filmava e passava o dia. Como no encontro com a Pati. Chegamos numa feira e conhecemos a Pati que foi pro bordel com a gente, pro quarto, nos levou pra fábrica de colchões, ou seja, não existia um roteiro. Só um desejo de se perder através de emoções.

KA – [...] Drifting way, sair navegando pelo lugar e ao mesmo tempo comer o lugar. Colecionar o máximo de coisas, matéria mesmo.

MG – Queríamos filmar, mas não existia um projeto claro de que filme era este. Teríamos um arquivo de material e depois veríamos se haveria filme a partir dali. Era um desejo de se perder naquele lugar, de pegar pedaços daquele lugar. Esse foi o primeiro passo mas não se tinha o desejo de se chegar a algum lugar lá na frente, tanto que filmamos em 1999 e fomos montar pela primeira vez em 2003. Queríamos fazer essa travessia antes da virada do milênio. Em 1999 tínhamos umas 40 horas de material, as entrevistas tinham 2 ou 3 horas, com pessoas que a gente encontrava, com artesãos, com gente da rua, um caminhoneiro... existia um desejo de tentar compreender. Desconstruimos um monte de clichês que nós próprios tínhamos sobre o sertão. Fomos desconstruindo a romantização do sertão aos poucos, compreendemos que o sertão não é só aquele sertão arcáico, quase mitológico. O sertão também é uma feira do Paraguai que tá ao lado da feira de Caruaru. O sertão também é uma garota que usa botas roxas com aquele calor pra ficar parecida com a Xuxa. O sertão é mais que uma casinha de barro com moradores levando uma vida simples. Por trás daquela simplicidade existe uma complexidade muito grande. [...] É romântico morar num lugar esquecido pelo desenvolvimento econômico, pela classe política, com um clima extremamente árido, onde se anda horas pra se conseguir água potável e cozinhar um feijão? É uma vida dura. E eu pensava, por que essas pessoas não se revoltam e não vão embora?

KA – Um aprendizado do cotidiano. Como não tínhamos plano de filmagem, estávamos de fato fazendo uma viagem de descoberta, podíamos observar as coisas com um outro tempo, não tinha objetivo concreto. Isso foi bacana porque permitia que ficássemos olhando.
JCB – E o Itaú?

MG – Só tínhamos que entregar um projeto para desenvolvimento de um roteiro. Entregamos.

KA – É um livro feito com colagens, pedaços de panos... Ficou bacana.

MG – Eu acho que a gente se emocionou muito com as imagens, acreditávamos nas imagens, é por isso que trabalhamos tanto tempo com elas até chegar a um longa. Nos emocionávamos toda vez que as víamos. Existia uma grande liberdade quando fazíamos aquelas imagens. Uma liberdade que sabíamos que não teríamos quando fossemos realizar nossos longas. Ali foi a grande escola de cinema pra mim e pro Karim. Foi ali que aprendemos a imaginar dentro de um cenário de filmagem, a colocar a imaginação diante de qualquer plano de filmagem, de qualquer roteiro e lembrar que existe espaço para a invenção na hora em que você está desenvolvendo um filme. Esses 40 dias passados no sertão foram uma grande escola. Aprendi mais que nos dois anos de escola de cinema na Inglaterra.

KA – Eu fui trabalhar no ABRIL DESPEDAÇADO porque tava duro e só depois fui tentar fazer o MADAME SATÃ em 2001.

MG – Eu fiz o CINEMA, ASPIRINAS E URUBUS em 2003. Nesse meio tempo saiu um edital do Itaú que era pra finalização de projetos de curtas-metragens. Resolvemos colocar no Itaú de novo, ganhamos uma pequena verba e fizemos o SERTÃO DE ACRÍLICO AZUL-PISCINA com o desejo de entender o que esse material queria dizer pra nos. Paralelo a isso colocamos o nosso projeto num concurso da Petrobrás pra tentar um dinheiro pra desenvolver um longa-metragem a partir do nosso material.

JCB – Vocês entregaram um argumento pra Petrobrás?

MG – Entregamos esse roteiro, o mesmo que entregamos pra o Itaú.

JCB – Portanto o roteiro do ACRÍLICO?

MG – Exatamente. Que era um longa construído a partir de pedaços, fragmentos de tudo que nos emocionava. Mas nunca tínhamos entrado numa ilha de edição pra montar.

KA – Esse roteiro não tinha uma organização narrativa nem episódica. Ele era organizado por temas. Eu prefiro pensar numa instalação com várias telas, uma maneira randômica, um ir pra frente ou pra trás sem nenhuma organização linear.

JCB – Como a Petrobrás reagiu a isso?

MG – Muito bem. Acharam muito bonito mas não sabiam onde aquilo ia dar.

KA – Acho que deram uma carta branca. Foi um ato de coragem grande.

MG – Esse prêmio saiu logo depois dos filmes da gente.

KA – Foi em 2006. Tínhamos construído algum lastro minimamente. Por isso eles fizeram essa aposta.

MG – Aí chegou a fase de se perguntar o que íamos fazer. Esse segundo momento.

KA –Eu passei dois anos fazendo uma série de televisão entre 2006 e 2008. Já não aguentava mais. Foi ótimo, mas eu queria fazer alguma coisa que não tivesse que prestar contas a ninguém. Então lembrei da possibilidade de revisitar esse material. [...] Pensamos ou é agora ou não é. E eu tava com muita vontade que fosse agora por uma necessidade parecida com a necessidade lá atrás de 1997. Na montagem do SERTÃO DE ACRÍLICO, lembro do prazer que eu tive quando “desencaixotamos” esse material. A gente gostava e não sabia por quê.

KA – Quem montou as versões de 26 minutos e de uma hora é a Isabela que montou o MADAME SATÃ e O CÉU DE SUELY, e a montadora do VIAJO é a Karen que montou o ASPIRINAS. [...] Existia a experiência do SIMS sobre a minha avó, meu primeiro filme, montado pela Isabela. Foi feito dessa maneira, eu fui juntando milhões de coisas, arquivos. Eu ia descobrindo o filme na montagem, foi bacana ter feito a primeira versão com a Isabela porque esse processo não era aflitivo pra gente, de saber se ia dar um filme ou não, havia uma grande cumplicidade.

MG – Além disso conhecíamos aquele material de trás pra frente, são imagens com que tivemos uma relação afetiva por dez anos. Tínhamos uma memória muito forte daquele tempo. A gente tava muito à flor da pele quando viajamos nesses 40 dias. Foi aí que decidimos construir esse personagem ficcional.

JCB – No projeto da Petrobrás esse personagem existia?

MG – Não. [...]

KA – Estruturamos o projeto da Petrobrás em cima do Canclini, de questões mais teóricas sobre temporalidade, isolamento, culturas híbridas, de que maneira aquele lugar negociou com a ausência de industrialização. Essas reflexões nos ajudaram de a organizar o material filmado, elas eram mais próximas de uma certa antropologia visual do que de uma dramaturgia narrativa.

MG – A primeira questão que surgiu é por que não trazer o sentimento que tivemos nesses 40 dias de viagem, de viver à flor da pele, de se emocionar com as coisas e ao mesmo tempo de perguntar o que essas pessoas estão fazendo aqui no meio do sertão. Trazer todas essas questões pra um personagem, e talvez um personagem ficcional que desse conta de todos esses elementos sobre os quais refletimos nesses 40 dias e que as imagens refletem. O Karim sugeriu que redimensionassemos essas imagens construindo um personagem ficcional à flor da pele, viajando pelo sertão, que não entende direito o que é aquele sertão e tá vivendo um drama interior e ao mesmo tempo vê aquela paisagem solitária. Ele vira reflexo da paisagem e a paisagem vira reflexo dele. [...] De uma forma ou de outra tínhamos sentido o que era um documentário com aquelas imagens. Então por que não redimensionar e trabalhá-las de outra forma? Nos nossos filmes bagunçamos a linguagem cinematográfica no melhor sentido. Se não bagunçar não trás algo novo, pra fazer um refluxo dentro da linguagem cinematográfica, pra gente se alimentar do cinema e o cinema da gente.

KA – [...] Quando Marcelo terminou de escrever, porque eu não escrevo, a gente discutiu muito, quando ficamos de acordo sobre o texto e o Marcelo partiu pra montagem eu dizia que podia ser que não tivéssemos filme. Mas isso não era importante, vamos ver o que a gente aprende antes de decidir se vai ter filme ou não. Ele foi pro Rio de Janeiro, ele a Karen começaram a montar e três semanas depois eu fui.

Entrevista (16.3.2010) transcrita por Walter Bahia, editada por JCB, sem revisão pelos entrevistados."

Para quem ainda não viu o filme, fica a dica.

Trilha de de hoje: Zaz e Nouvelle Vague.

Um comentário:

Nanda Assis disse...

pena q eu n tive tempo de ler tanta coisa, mas deixo um forte abraço e bjoss...

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